Introdução:
O presente artigo tem por objetivo fundamental adentrar os conceitos de política criminal e criminalidade em qualidade de política pública, discutindo a tendência de repressão violenta à própria violência e a consequente formação de uma “inconsciência coletiva” e seus efeitos para a produção de políticas públicas. Principalmente, observa-se um fenômeno social de violência e de relação com o fenômeno criminoso, com breve referência ao conteúdo de mídias sociais. É importante frisar que o enfoque proposto no presente artigo é a ‘criminalidade de rua’.
Política criminal e política pública: definições e relações conceituais
De forma principal e imprescindível à reflexão da política criminal, devemos pôr em foco a seguinte questão: de que maneira – e em que medida – a política criminal se qualifica como política pública. Define-se como política criminal, nas palavras de Eugênio Raul Zaffaroni:
“{...} a ciência ou a arte de selecionar os bens jurídicos que devem ser tutelados penalmente e os caminhos para tal tutela, o que implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos.” (Zaffaroni, p. 163)
Baseando-se no capítulo Introdução à Teoria da Política Pública de Enrique Saravia, dentro da coletânea Políticas Públicas, uma política pública é um sistema de decisões públicas que visa ações ou omissões, preventivas ou corretivas, que tem por fim manter ou modificar a realidade de setor(es) da vida social, utilizando-se da definição de objetivos e estratégias e da alocação dos recursos necessários a atingir tais objetivos. (Saravia, p. 29). Outra definição é a de Reinaldo Dias e Fernanda Matos:
“As ações empreendidas ou não pelos governos que deveriam estabelecer condições de equidade no convívio social, tendo por objetivo dar condições para que todos possam atingir uma melhoria da qualidade de vida compatível com a dignidade humana.” (Dias, Matos. p. 12)
O funcionamento da máquina estatal depende, então, da multidisciplinaridade, do ânimo em intenção e construção, e da normatividade das políticas públicas. Em fins de política criminal, no entanto, faz-se necessário observar a política pública para além de sua “intuição”, direcionando de forma mais específica o olhar crítico a sua “construção” em adição a sua perspectiva plenamente teórica (Calil, p. 96).
Para fins de análise, é infrutífero observar a política criminal em sua categoria de ciência, como na definição supracitada de Zaffaroni. É mais proveitoso considerar a política criminal em sua capacidade de instrumento intencional e de finalidade subjetiva. Desta forma, para relacionar a política pública à política criminal, devemos aferir o valor objetivado das mesmas em correlação direta de funcionalidade.
Reflexões sobre política criminal
É incomum (tanto em escopo acadêmico quanto social, corriqueiro) que encaremos o conceito de política criminal indo além de seu valor prático. Em outras palavras, poucas vezes se pensa a política criminal tendo em vista sua qualidade de política pública; isto é, como objeto de interesse do Estado em sociedade. Em sua tese de doutorado pela Universidade de São Paulo, Rafael Folador Solano traz os seguintes questionamentos:
Quem elaborou tal escolha? Quais interesses impulsionaram a medida? É adequado despender recursos públicos para tal finalidade? Existe mecanismo para avaliar os efeitos da política criminal adotada? Questiona-se, então, por qual razão as políticas relacionadas à tipificação de condutas {...} geralmente não se submetem ao mesmo grau de exigência teórica das demais políticas públicas? (Solano, p. 24)
Refiro-me à definição de política criminal de Zaffaroni para fazer a subsequente provocação: nos caminhos tomados na tutela de política criminal, de onde vem os “valores e caminhos já eleitos” como seu compasso? Quem dita e exige as críticas que são indispensavelmente feitas?
Podemos interpretar tais questões sob a ótica simplista de estarmos inseridos em um Estado Democrático; isto é, tais que detêm o “monopólio” da crítica e da exigência teórica que cita Solano em sua tese são os cidadãos a qual o Estado responde e é respondido. Em sua tese, acaba por concluir que a política criminal é etérea. Nas palavras do professor argentino Alberto Binder:
“{...} deixar que um setor da política tão importante como a política criminal fique sem apoio teórico ou técnico, abandonada à deriva das emoções ou discussões irracionais é o melhor caminho para autoritarismo, o populismo e a expansão da violência estatal.” (Binder, p. 58)
De forma epistemológica, podemos entender a falta de uma concretização de política criminal efetiva como retroalimentar de inefetividade no combate ao crime. Além disso, a falta de apoio ‘teórico ou técnico’ abre espaço para a individualização de repressão ao criminoso de forma articuladamente violenta por parte de setores da população e não apenas do Estado.
“À deriva das emoções”: a justiça e a obsessão com a repressão popular do criminoso
Tomemos um exemplo prático para iniciarmos a reflexão acerca da figura do criminoso na era digital: não foram poucas às vezes que, nas eleições de 2018, repercutiram e compartilharam-se discussões sobre a notória concepção de que “bandido bom é bandido morto”, entre outras frases de mesmo cunho. No presente trabalho, deve-se notar que pouco importa a análise crítica da frase de fato, e sim, seu valor propagandístico. Por que – além da demonstração de pugna violência – cria-se uma comoção da resposta violenta ao fenômeno criminoso? Por que importa tanto, às mãos e aos olhos da população, a violência como instrumento político? De que se cria o anseio pela “vingança” como política criminal feita pelas mãos do povo em acepções tão arcaicas?
Sob essa perspectiva, é compreendida e distorcida a existência de uma política criminal como mecanismo de subtração de direitos em vez de garantidora. A política criminal como política pública não é feita nem categorizada em serviço do cidadão, mas sim servindo, de forma político-ideológica, como alicerce de violência. A qualidade “etérea” é, em sentido crítico, a ausência de política criminal efetiva a fim de garantir a segurança pública abre espaço para que considere-se a segurança um bem que deve ser feito em medidas talionais por parte do cidadão.
O direito de punir do Estado torna-se, nesta perspectiva, também um direito e dever do cidadão. É ultrapassada uma linha fina de intervenção, que acaba por virar uma inconsistente via de mão dupla. Alessandro Baratta aponta que, principalmente no Brasil, o Estado é “formador da própria sociedade”: diferente de alguns países centrais, onde há um direcionamento claro de todas as demandas ao Poder Público, o atendimento das demandas no país ocorre de maneira independente das formas de representação serem ou não serem institucionalizadas (Baratta, p. 300). A hipótese de Baratta apresenta aspectos problemáticos claros para a implementação de políticas públicas conceitual e teoricamente; especialmente no que diz respeito à criminalidade.
O populismo penal e o papel das redes sociais
A influência da construção da política criminal no direito penal é negativa no sentido de que “imuniza-os dos influxos político-partidários” (Calil, p. 100), trazendo à luz o conceito de populismo penal:
“{...} chama de populista o método (ou discurso ou técnica ou prática) hiperpunitivista que se vale do (ou que explora o) senso comum, o saber popular, as emoções e as demandas geradas pelo delito e pelo medo do delito, para conquistar o consenso ou apoio da população em torno da imposição de mais rigor penal (mais repressão e mais violência), como "solução" para o problema da criminalidade {...}. Trata-se de um discurso político do inconsciente coletivo, que descansa sobre uma criminologia arcaica do homem criminoso, o "outro estranho" (criminologia do outro) {...}, e que explora a insegurança pública {...} como fundamento para a adoção de mais medidas punitivas (no Brasil, a segurança pública, que preocupava apenas 15% da população em 1989, chegou a 42% em 2010, segundo pesquisa do Ibope, citada na Carta Capital 720 de 24.10.12, p.16; na América Latina a criminalidade, desde 2008, passou a ser a primeira preocupação {...}, facilitadas pelas representações sociais do infrator, ou seja, não é somente a lei que estabelece o que é o crime, também as imagens que lhes são atribuídas socialmente {...}. Estamos diante de uma crítica (que se imagina) racional contra um discurso (ou método ou técnica) reconhecidamente irracional, emotivo e desproporcional {…} E o saber técnico letrado (científico, talvez) que se antepõe ao saber do vulgo ou que se aproveita da sua ignorância ou emotividade, buscando seu apoio para fazer expandir ainda mais o sistema penal repressivo injusto e seletivo que é exercido apenas contra alguns bodes expiatórios {...}. No plano político o populismo se caracteriza pela manobra da vontade da massa, do povo, guiada por um líder carismático, que procura atender suas demandas e promover (tendencialmente) o exercício tirânico do poder {...}. No campo penal a expressão "populismo" vem sendo utilizada para designar uma específica forma de exercício (e de expansão) do poder punitivo {…}, caracterizada pela instrumentalização ou exploração do senso comum, da vulgaridade e da vontade popular. Populismo penal, portanto, não pode se equiparar simplesmente ao punitivismo {...} sim, é sinônimo de hiperpunitivismo, de uma economia penal excessiva" ou grotesca {...} desnecessária, abusiva, que escamoteia a vontade popular, passando-lhe a ilusão de solução de um problema extremamente complexo. {...} fala-se do discurso populista em tom acusatório, desqualificativo, denuncista, para exprimir uma oposição clara entre o saber científico e o saber criminológico, que por meio de técnicas específicas manipula a questão criminal (e a vontade da população, chamada de “opinião pública") para atender interesses que transcendem o campo do sistema penal ou da prevenção geral do delito {...}.” (Gomes, Almeida. p 18-26).
Na perspectiva político-ideológica, há um empecilho de fazer a política criminal assumir papel de política pública principalmente por estarmos cada vez mais nos voltando ao penalismo como aparato de repressão para muito além da condenação ética. Aos olhos de uma política criminal inexistente, encarna-se na figura do criminoso de rua um sujeito “para além da redenção” (KARAM, p. 79). Na perspectiva de um populismo penal midiático, explora-se o medo desse sujeito a ponto de que políticas públicas não sejam sequer ansiadas para sua reinserção em sociedade. Trata-se, além de uma questão política, de uma questão social extremamente inflamatória – o “populismo penal” fere a construção de uma política criminal efetiva na medida em que recrudesce um hiperpunitivismo que acaba por ser detrimento também de inúmeras políticas públicas.
O papel das redes sociais na formação do “discurso político do inconsciente coletivo” faz-se de suma importância tendo em vista a construção de verdades estabelecidas na repetição de discursos na Internet. O populismo penal tem sua origem no clamor público de escala repetitiva e abrangente; e as redes sociais são imbatíveis em seu alcance de influência e de rápida disseminação de informações (sendo essas verdadeiras ou falsas).
Conclusão
De forma objetiva, temos que a política criminal se encaixa, conceitualmente, dentro da definição de política pública em condições metodológicas, e não do seu mérito finalístico. Assim, compreende-se a razão pela qual a política criminal não é estudada e amplamente compreendida como uma política pública de maneira integral. No entanto, podemos observar como ambas andam lado a lado no que se entende pela construção subjetiva, ideal para a política criminal mas não aplicada por falta de aparatos tanto teóricos quanto práticos. A política criminal no Brasil assume, então, uma disposição fugaz, truncada; fundamentalmente, serve como empecilho para o desenvolvimento de políticas públicas que deveriam abrandar taxas de criminalidade. Ademais, a falta de política criminal de forma teórica e prática serve como origem criteriosa de um anseio radical popularizado por repressão violenta a crimes, por menores que sejam, que populariza-se em tempos recentes. Cria-se uma concepção violenta como resposta à mesmíssima violência, desencadeando um fenômeno irracional de “combate” ao crime que impossibilita tanto políticas criminais quanto políticas públicas.
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