Primeiras linhas sobre Eficientismo Penal e Garantismo Constitucional
- João Pedro de O. Lopes
- Nov 15, 2022
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A história do nosso país é intrinsecamente ligada ao nosso passado escravocrata. Passados mais de 300 anos, com uma pressão internacional pela abolição, o processo de libertação dos escravos foi executado, sem qualquer política de reparação, compensação, indenização ou, ainda que fosse, de integração do povo negro escravizado à sociedade. A respeito dos anos que vieram após a abolição, o escritor Lima Barreto (1881-1922), afirma que "nunca houve anos, no Brasil, em que os pretos (...) fossem mais postos à margem". Com o intuito de manter a segregação da população ex-escravizada, as instituições, ao invés de buscarem garantir a seguridade social ampla e, principalmente, para os recém alforriados, acabaram por incentivar políticas públicas que favoreciam apenas parte da sociedade, aumentando o abismo social e dificultando ainda mais a vida daqueles que não conseguiam, por consequência, auxílio estatal.
Quase 80 anos depois da referida abolição, em março de 1964, o Exército Brasileiro aplicou um Golpe de Estado, fazendo com que a ditadura perdurasse até 1985. Com o final da ditadura militar, formou-se uma Assembleia Constituinte e a Constituição Federal de 1988 foi promulgada, estabelecendo dispositivos que asseguravam, de forma permanente, o Estado Democrático de Direito, com todas as suas respectivas garantias constitucionais. No entanto, apesar dos princípios constitucionais básicos, que garantem a presunção de inocência, o devido processo legal, o juiz natural, isonomia, dentre outros direitos aos cidadãos, ainda pode ser observados alguns resquícios do pensamento punitivista, em diversos setores da sociedade brasileira.
Assim, no presente artigo, pretende-se apresentar dois modelos de políticas criminais, o do Eficientismo Penal e o Garantismo Constitucional, com breve análise do contexto atual do Brasil e introdução de primeiras linhas com sugestões de soluções para o problema da segurança pública e superlotação do sistema carcerário no país.
Garantismo Constitucional
Quando, em 1985, o Brasil sai de uma ditadura militar repressiva, há uma grande preocupação com os direitos básicos de cidadania, que haviam sido violados naqueles anos anteriores. Nesse intuito, a Assembleia Constituinte promulgou a Constituição de 1988, na qual foram positivados direitos individuais e sociais, que a elevaram ao posto de uma das mais progressistas e garantistas constituições da época. Obteve-se grandes avanços no campo dos direitos humanos com os importantes artigos 5º e 7º, protegidos pela imutabilidade prevista no artigo 62, transformando as garantias mínimas dos marcos civilizatórios básicos, em cláusula pétrea.
Segundo o filósofo Baruch de Espinosa (1632 - 1677), a multidão é um movimento dotado de individualidades, mas que deve ser interpretada enquanto um único corpo, que emana uma vontade de perseverança que irá se desdobrar na forma de Leis, quando essa multidão for uma população com certa capacidade jurídica. Já segundo Hans Kelsen (1881-1973), pai do positivismo jurídico, as normas devem ser subservientes à constituição, norma suprema que, novamente, emana da expressão do pensamento daquele povo.
Assim, o garantismo constitucional vem como uma vertente mais próxima dos direitos humanos, que busca, como o nome indicia, garantir a todos uma dignidade e respeito que independa dos atos praticados. O autor e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO) João Ricardo W. Dornelles, em seu livro "Conflito e Segurança: Entre Pombos e Falcões", afirma que:
"Esse (Garantismo Constitucional) é um modelo baseado no ‘discurso da cidadania e dos direitos humanos’, buscando articular medidas de longo e médio prazo(...) visa a contenção da criminalidade através de estratégias não repressivas de controle(...) contando com a articulação de políticas públicas de diferentes naturezas e a participação ativa e organizada da sociedade civil. Ou seja, buscando controlar a criminalidade e a violência sem perder de vista os princípios democráticos baseados nos direitos fundamentais constitucionais."
Acontece que, como visto anteriormente, o conjunto das leis representa a expressão do pensamento de uma população específica, enquadrada em um determinado período de tempo e, com isso, pode-se observar que, o pensamento do legislador constituinte daquela época, infelizmente, não reflete o pensamento da população dos dias de hoje, gerando diferentes interpretações para a mesma escrita ao longo dos anos. Assim, motivado por uma grande influência norte-americana, o respeito às garantias constitucionais se desgastou dando lugar ao que conhecemos hoje por Eficientismo Penal.
Eficientismo Penal
Durante a década de 70, os Estados Unidos da América começam uma campanha de importação de políticas de segurança pública para o mundo, com o discurso de “Lei e Ordem”. Com isso, há uma transformação no pensamento social em que a seara penal do Direito, deixa de ser a última via para solucionar conflitos, criando uma política de tolerância zero para, até mesmo, os pequenos desvios de conduta. Conforme afirma Alessandro Barata (1933-2002), "o Direito Penal não é mais a ‘extrema’, mas sim, a prima ratio para uma nova solução dos problemas sociais, que é, ao mesmo tempo, repressiva... e simbólica."
Nesse diapasão, firma-se, de forma ligeira e fugaz, uma corrente do Direito Penal chamada Eficientismo Penal. Novamente de acordo com os ensinamentos do professor João Ricardo W. Dornelles, "o eficientismo penal é uma nova forma do direito penal em emergência que se expressa através de políticas públicas criminais repressivas e conflitos sociais com fundamento nos discursos de 'Lei e Ordem'." Em outras palavras, as políticas que deveriam servir para gerar segurança e bem-estar social, na verdade geram uma desconfiança geral, sentimento de insegurança como regra geral. Ainda segundo o professor, "a política criminal neoliberal, segundo um modelo ultraconservador de controle social, elabora um discurso de combate à delinquência que torna menos humanos os delinquentes".
Contexto Atual do Brasil
Assim, o Estado brasileiro, inspirado no ideal americano, dessa ideologia dicotômica do bem contra o mal, implementou - e segue implementando - diversas políticas criminais que visam enfrentar problemas sociais, com medidas de caráter punitivo, como foi o caso das operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro, para implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Essas adversidades, que deveriam ser resolvidas com políticas públicas diversas – na área de educação, saúde, renda básica universal, busca pelo pleno emprego, dentre outras – são enfrentadas como problema de polícia, apenas uma questão de segurança pública, afastando-as cada vez mais de suas soluções reais, de longo prazo.
Outros exemplos claros de deslocamento do garantismo penal pro eficientismo penal podem ser verificados nos enunciados do 1º Congresso do “Ministério Público Pró-Sociedade”, realizado na sede da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, em Brasília, DF, nos dias 29 e 30 de dezembro de 2018. Com efeito, não obstante a função institucional precípua do Ministério Público seja de velar pela observância da Constituição e das leis, membros do Ministério Público brasileiro, naquela oportunidade reunidos divulgaram à sociedade que:
"Enunciado 21 – Os participantes do 1º Congresso do Ministério Público Pró-Sociedade apoiam o Efetivismo Penal, mediante implantação de novas políticas e alterações legislativas criminais que resultem no aumento da eficácia do sistema socioeducativo, dentre elas, a redução da maioridade penal para 16 anos e a definição dos tipos penais sobre os quais deve incidir a regra do aumento do tempo de cumprimento das medidas, cujos limites precisam ser debatidos."
"Enunciado 22 – O Efetivismo Penal repudia a política de soltura indiscriminada de criminosos e recomenda a diminuição da lotação carcerária mediante criação de vagas no sistema prisional, com os recursos existentes no Fundo Penitenciário Nacional."
"Enunciado 23 – O Ministério Público deve reconhecer que a prática do crime é, essencialmente, uma decisão pessoal."
Ao insistir nesse enquadramento, de que as questões referentes à segurança pública deveriam ser tratadas apenas pelo poder de polícia, preconceitos são mascarados de solução, resultando na manutenção da repressão seletiva das instituições contra negros, indígenas, imigrantes e outras minorias que acabam tendo suas garantias constitucionais constantemente violadas para dar à uma pequena parcela da população, a sádica satisfação da punição e do sofrimento do outro.
Conclusão
Pode-se observar, portanto, que, enquanto o Garantismo Constitucional visa dar ao povo, em sua totalidade, segurança e direitos, o Eficientismo Penal acaba por positivar leis segregacionistas, com foco em vigiar e punir aqueles indivíduos considerados, por alguns membros da sociedade, como estranhos.
Para frear o distanciamento do Garantismo Penal e coibir a adoção do Eficientismo, se faz necessária uma transformação mais profunda, no próprio pensamento social, com políticas que nos levem a entender a população enquanto uma grande e variada porção de pessoas, que merecem, independentemente de sua posição social ou características pessoais, o respeito e igualdade que lhes foram tacitamente prometido pelo Estado Brasileiro.
Nesse sentido, é preciso, em primeiro lugar, dar fim as guerras às ideias. Guerra às drogas, guerra ao terror, guerra ao comunismo, enfim, guerras que servem somente para manipular as narrativas, que justificam ações violentas do Estado. No mais, é preciso que os entes capazes proponham leis de inclusão da parcela invisibilizada e excluída da sociedade, que campanhas de políticas públicas trabalhem a diversidade cultural dos brasileiros, para que, no futuro, se reconheçam enquanto um só povo.
BIBLIOGRAFIA:
https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/viatura-da-prf-utilizada-como-camara-de-gas-durante-abordagem-passa-por-pericia/ ; https://www.mpm.mp.br/portal/wp-content/uploads/2018/12/enunciados-mpsociedade.pdf
BARATTA, Alessandro. Defesa dos direitos humanos e política criminal. Discursos sediciosos, v. 2, p. 57-69, 1997.
DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e segurança: entre pombos e falcões. Editora Lumen Juris, 2003. Pág 46. Felipe Betim; UPPs, mais uma história de esperança e fracasso na segurança pública do Rio – El País Brasil, disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/11/politica/1520769227_645322.html
Art. 3º da LCP º 40/1981, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp40.htm
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